Por Leilton Lima*
Desde o início das reuniões sigilosas, eles tinham acertado não se tratar pelos nomes. A ideia veio do banqueiro, o responsável pela articulação financeira do esquema. Era uma forma de manter a estrita confidencialidade que a articulação precisava, inspirada na famosa série La Casa de Papel. Se tudo desse certo, haveria uma mudança radical no futuro próximo do País.
Naquele dia o clima estava tenso. O grupo teria que encontrar uma solução para um problema vital. A discussão ainda não tinha chegado ao X da questão, mas o ensaio já prometia. — Não existe partido militar em nosso país, protestou o Doutor. Sua ignorância era compreensível, ele havia se integrado aos patriotas havia menos de um ano.
O General interveio. — Já está na hora de você tomar conhecimento de mais esta informação confidencial. O Partido Militar é o nome do grupo que vai livrar o País dos comunistas que se infiltraram no poder.
Ele falava de uma organização extraoficial, desconhecida até para alguns integrantes do mais alto escalão das Forças Armadas. Formou-se na época em que o governo deposto resolveu investigar os crimes cometidos por militares na época da ditadura. Revoltados com a ousadia, um grupo de membros do alto comando decidiu reagir.
Depois de concluírem que não havia condições políticas, sociais e econômicas para o uso da força, a decisão foi buscar a via eleitoral. Como a Lei proíbe a participação de membros das Forças Armadas na política partidária, foi criado o Partido Militar, a organização secreta que comandou o processo de tomada do poder no País.
Tudo começara com o Plano Impeachment. Na verdade, um golpe de Estado cuidadosamente disfarçado que tirou do poder seus adversários. O problema agora era a iminente volta dos inimigos políticos, que mais uma vez surgiam como favoritos nas pesquisas eleitorais. O desgaste político, os milhões investidos, o esquema de suborno, a falência de empresas nacionais. Todo o sacrifício poderia se revelar inútil caso isso acontecesse. Perder a eleição não era minimamente aceitável. Aquela reunião tinha esse problema como tema central.
Havia vários grupos organizados pelo Partido Militar, o Patriota era uma espécie de Conselho Geral que reunia as principais lideranças da Organização. Além do Doutor e do General, estavam ali o Juiz, que comandava a República, a célula que reunia juízes, promotores e demais membros do Poder Judiciário. O Jornalista, que chefiava o Global, grupo responsável pelas informações, marketing e articulação com a imprensa e o Zero Um, responsável por uma gigantesca rede via Internet que importara a estratégia de Fake News que havia levado o azarão Donald Trump à presidência do país mais poderoso do mundo.
Além deles, havia também o Pastor, que comandava a Eclésia, uma poderosa organização de conservadores das principais denominações religiosas do País. Todos os segmentos necessários estavam contemplados com perfeição e detinham máxima influência no Legislativo, Judiciário e Executivo, além da imprensa. Seus líderes haviam recebido treinamento de elite, alguns ministrados pela própria CIA.
Os Patriotas ainda comemoravam a anulação do candidato favorito nas pesquisas. O Plano Lawfare, executado por um consórcio entre os grupos Global e a República, tinha encarcerado e calado seu maior adversário. A ideia de eliminá-lo chegou a ser considerada, mas depois de violento debate, foi recusada por temor de uma reação popular, o que destruiria todo o plano iniciado anos antes com o golpe de Estado.
O Jornalista tratou de expor a situação. Ainda se sentia ridículo ao pronunciar o nome escolhido para o candidato do grupo, mas fora vencido na escolha. — Como era de se esperar, o Ungido não está bem nas pesquisas. Infelizmente estamos sem opção. Todas as alternativas a ele, estão ainda piores. Precisamos de uma ação que gere uma comoção nacional. Um golpe final e definitivo.
O Doutor tomou a palavra. — Como todos aqui sabem, esse não é nosso único problema. O Ungido precisa de uma cirurgia urgente. Não há como adiarmos mais, sob o risco de ele ir a óbito antes do dia da eleição. Mas o relato de vocês reforçou uma ideia que eu venho maturando e que agora se apresenta como única saída. Podemos fazer desse limão uma limonada. Se tudo correr bem, vamos gerar um fato capaz de garantir a vitória do Ungido.
Ele expôs o plano em detalhes.
Todos concordaram. Era tudo ou nada. — Eu tenho a pessoa certa para o papel. Disse o Pastor. Um fiel da minha Igreja foi afastado por agressão física em uma discussão política com um eleitor do Ungido. Em todo lugar existem os desviados, mas nesse caso exames posteriores revelaram que ele tem distúrbios mentais.
A animosidade descontrolada somada ao fanatismo religioso formava a receita perfeita. O Pastor tratou de estabelecer o codinome do escolhido. Pela importância da missão, ele seria A Mão de Deus.
A rede de contatos mantinha os integrantes do Patriota livres de suspeita de envolvimentos com as ações. As mensagens do Comando Maior eram enviadas para emissários subordinados ao Pastor que, por sua vez, desconheciam totalmente sua origem. Eram os Irmãos. Não foi difícil para o Irmão convencer aquele fiel ardoroso a assumir o papel da Mão de Deus que livraria a nação do mal. Claro que o ódio que nutria contra o Ungido, somado a uma vultosa soma em dinheiro e a promessa de proteção judicial, caso se mantivesse em silêncio, contribuíram muito para a aceitação.
Finalmente, depois de meses de planejamento, chegou o grande dia. O Ungido estaria no meio do povo. A segurança seria diminuída, deixando apenas os homens de máxima confiança. Todos já ensaiados para a ação.
A Mão de Deus estava no meio da aglomeração de eleitores desde o início. Sabia que devia ficar atento ao aparecimento de uma mulher loira, usando uma camisa vermelha, com a estampa do Ungido, algo realmente de destaque, já que vermelho era a cor dos adversários. Ela iria lhe passar a faca no momento certo. Havia mais de uma hora que ele olhava ansioso sem que pudesse localizar ninguém com as características indicadas. Estava decidindo voltar para casa quando uma pessoa tocou no seu ombro apontou para uma mulher de camisa vermelha e sumiu a seguir.
Ele saiu forçando a passagem na contramão do amontoado de gente. A mulher veio em sua direção e passou por ele esfregando seu corpo contraído pela pequena multidão. Nesse exato momento, repassou o objeto e se afastou depressa, seguindo direto para o aeroporto, conforme os planos. Tateando com as mãos abaixo da cintura, a Mão de Deus localizou o cabo da faca e o segurou com firmeza.
O objeto não era desconhecido, lhe tinha sido entregue alguns dias antes para que ele o manuseasse sob o pretexto de conhecer o peso e tamanho da arma que seria usada. Na verdade, inocentemente, ele estava deixando ali as suas impressões digitais. Com o instrumento ainda na mão, ele recebeu as instruções. Aquela mesma faca lhe seria entregue envolta em um cartaz da campanha e ele só poderia rasgar o papel quando tivesse próximo do Ungido o suficiente para dar o golpe fatal.
Surdo aos gritos e aplausos ao seu redor, ele apertava o cabo com força enquanto empurrava as pessoas, olhar fixo no Ungido que naquele momento desfilava nos ombros de um dos seguranças. Lembrou-se das instruções. — Não atinja o coração. O golpe precisa ser na barriga para que você possa receber sua recompensa. Era a hora! Ele rasgou a embalagem que cobria a faca e com três passos estava logo abaixo do Ungido. Não reparou que um dos seguranças se afastou ligeiramente, permitindo-lhe a passagem.
Como planejado, a ação foi rápida. A Mão de Deus cravou a faca no abdômen do Ungido, sem se dar conta de que não era o mesmo objeto que antes esteve em suas mãos. A lâmina especial usada em truques de ilusionismo deu a impressão de penetrar no abdômen, mas deixou a carne ilesa. O Ungido não precisou fingir. O impacto na região acometida pela enfermidade estava sensível e ele se contraiu acusando uma dor aguda e verdadeira.
Os seguranças cumpriram sua parte com profissionalismo, enquanto alguns o detinham, a Mão de Deus, tomando-lhe a faca falsa e substituindo pela verdadeira devidamente preparada, os outros retiraram dos bolsos os lenços brancos recebidos na véspera e prontamente cobriram o que seria o local da ferida, impedindo assim que a multidão em pânico notasse que não havia sangue saindo do que deveria ser o ferimento.
As lentes das câmeras posicionadas conforme a orientação do Jornalista, registraram o Ungido sendo conduzido do local sob a comoção geral dos presentes. Os robôs da Internet comandados por Zero Um trataram de espalhar a versão dos Patriotas para todo o País. A posterior apresentação da faca e de uma camisa furada manchada de sangue deram o tom de uma comprovação que poucos exigiam naquele momento. No hospital, a equipe de máxima confiança do Doutor pôde enfim realizar a inadiável cirurgia que salvaria a vida do Ungido. Pouco tempo depois, o plano surtiria o efeito desejado: o ungido seria conduzido ao cargo político máximo do País.
(Leilton Lima é jornalista e assessor do SINTE/RN)*
Por Leilton Lima*
Desde o início das reuniões sigilosas, eles tinham acertado não se tratar pelos nomes. A ideia veio do banqueiro, o responsável pela articulação financeira do esquema. Era uma forma de manter a estrita confidencialidade que a articulação precisava, inspirada na famosa série La Casa de Papel. Se tudo desse certo, haveria uma mudança radical no futuro próximo do País.
Naquele dia o clima estava tenso. O grupo teria que encontrar uma solução para um problema vital. A discussão ainda não tinha chegado ao X da questão, mas o ensaio já prometia. — Não existe partido militar em nosso país, protestou o Doutor. Sua ignorância era compreensível, ele havia se integrado aos patriotas havia menos de um ano.
O General interveio. — Já está na hora de você tomar conhecimento de mais esta informação confidencial. O Partido Militar é o nome do grupo que vai livrar o País dos comunistas que se infiltraram no poder.
Ele falava de uma organização extraoficial, desconhecida até para alguns integrantes do mais alto escalão das Forças Armadas. Formou-se na época em que o governo deposto resolveu investigar os crimes cometidos por militares na época da ditadura. Revoltados com a ousadia, um grupo de membros do alto comando decidiu reagir.
Depois de concluírem que não havia condições políticas, sociais e econômicas para o uso da força, a decisão foi buscar a via eleitoral. Como a Lei proíbe a participação de membros das Forças Armadas na política partidária, foi criado o Partido Militar, a organização secreta que comandou o processo de tomada do poder no País.
Tudo começara com o Plano Impeachment. Na verdade, um golpe de Estado cuidadosamente disfarçado que tirou do poder seus adversários. O problema agora era a iminente volta dos inimigos políticos, que mais uma vez surgiam como favoritos nas pesquisas eleitorais. O desgaste político, os milhões investidos, o esquema de suborno, a falência de empresas nacionais. Todo o sacrifício poderia se revelar inútil caso isso acontecesse. Perder a eleição não era minimamente aceitável. Aquela reunião tinha esse problema como tema central.
Havia vários grupos organizados pelo Partido Militar, o Patriota era uma espécie de Conselho Geral que reunia as principais lideranças da Organização. Além do Doutor e do General, estavam ali o Juiz, que comandava a República, a célula que reunia juízes, promotores e demais membros do Poder Judiciário. O Jornalista, que chefiava o Global, grupo responsável pelas informações, marketing e articulação com a imprensa e o Zero Um, responsável por uma gigantesca rede via Internet que importara a estratégia de Fake News que havia levado o azarão Donald Trump à presidência do país mais poderoso do mundo.
Além deles, havia também o Pastor, que comandava a Eclésia, uma poderosa organização de conservadores das principais denominações religiosas do País. Todos os segmentos necessários estavam contemplados com perfeição e detinham máxima influência no Legislativo, Judiciário e Executivo, além da imprensa. Seus líderes haviam recebido treinamento de elite, alguns ministrados pela própria CIA.
Os Patriotas ainda comemoravam a anulação do candidato favorito nas pesquisas. O Plano Lawfare, executado por um consórcio entre os grupos Global e a República, tinha encarcerado e calado seu maior adversário. A ideia de eliminá-lo chegou a ser considerada, mas depois de violento debate, foi recusada por temor de uma reação popular, o que destruiria todo o plano iniciado anos antes com o golpe de Estado.
O Jornalista tratou de expor a situação. Ainda se sentia ridículo ao pronunciar o nome escolhido para o candidato do grupo, mas fora vencido na escolha. — Como era de se esperar, o Ungido não está bem nas pesquisas. Infelizmente estamos sem opção. Todas as alternativas a ele, estão ainda piores. Precisamos de uma ação que gere uma comoção nacional. Um golpe final e definitivo.
O Doutor tomou a palavra. — Como todos aqui sabem, esse não é nosso único problema. O Ungido precisa de uma cirurgia urgente. Não há como adiarmos mais, sob o risco de ele ir a óbito antes do dia da eleição. Mas o relato de vocês reforçou uma ideia que eu venho maturando e que agora se apresenta como única saída. Podemos fazer desse limão uma limonada. Se tudo correr bem, vamos gerar um fato capaz de garantir a vitória do Ungido.
Ele expôs o plano em detalhes.
Todos concordaram. Era tudo ou nada. — Eu tenho a pessoa certa para o papel. Disse o Pastor. Um fiel da minha Igreja foi afastado por agressão física em uma discussão política com um eleitor do Ungido. Em todo lugar existem os desviados, mas nesse caso exames posteriores revelaram que ele tem distúrbios mentais.
A animosidade descontrolada somada ao fanatismo religioso formava a receita perfeita. O Pastor tratou de estabelecer o codinome do escolhido. Pela importância da missão, ele seria A Mão de Deus.
A rede de contatos mantinha os integrantes do Patriota livres de suspeita de envolvimentos com as ações. As mensagens do Comando Maior eram enviadas para emissários subordinados ao Pastor que, por sua vez, desconheciam totalmente sua origem. Eram os Irmãos. Não foi difícil para o Irmão convencer aquele fiel ardoroso a assumir o papel da Mão de Deus que livraria a nação do mal. Claro que o ódio que nutria contra o Ungido, somado a uma vultosa soma em dinheiro e a promessa de proteção judicial, caso se mantivesse em silêncio, contribuíram muito para a aceitação.
Finalmente, depois de meses de planejamento, chegou o grande dia. O Ungido estaria no meio do povo. A segurança seria diminuída, deixando apenas os homens de máxima confiança. Todos já ensaiados para a ação.
A Mão de Deus estava no meio da aglomeração de eleitores desde o início. Sabia que devia ficar atento ao aparecimento de uma mulher loira, usando uma camisa vermelha, com a estampa do Ungido, algo realmente de destaque, já que vermelho era a cor dos adversários. Ela iria lhe passar a faca no momento certo. Havia mais de uma hora que ele olhava ansioso sem que pudesse localizar ninguém com as características indicadas. Estava decidindo voltar para casa quando uma pessoa tocou no seu ombro apontou para uma mulher de camisa vermelha e sumiu a seguir.
Ele saiu forçando a passagem na contramão do amontoado de gente. A mulher veio em sua direção e passou por ele esfregando seu corpo contraído pela pequena multidão. Nesse exato momento, repassou o objeto e se afastou depressa, seguindo direto para o aeroporto, conforme os planos. Tateando com as mãos abaixo da cintura, a Mão de Deus localizou o cabo da faca e o segurou com firmeza.
O objeto não era desconhecido, lhe tinha sido entregue alguns dias antes para que ele o manuseasse sob o pretexto de conhecer o peso e tamanho da arma que seria usada. Na verdade, inocentemente, ele estava deixando ali as suas impressões digitais. Com o instrumento ainda na mão, ele recebeu as instruções. Aquela mesma faca lhe seria entregue envolta em um cartaz da campanha e ele só poderia rasgar o papel quando tivesse próximo do Ungido o suficiente para dar o golpe fatal.
Surdo aos gritos e aplausos ao seu redor, ele apertava o cabo com força enquanto empurrava as pessoas, olhar fixo no Ungido que naquele momento desfilava nos ombros de um dos seguranças. Lembrou-se das instruções. — Não atinja o coração. O golpe precisa ser na barriga para que você possa receber sua recompensa. Era a hora! Ele rasgou a embalagem que cobria a faca e com três passos estava logo abaixo do Ungido. Não reparou que um dos seguranças se afastou ligeiramente, permitindo-lhe a passagem.
Como planejado, a ação foi rápida. A Mão de Deus cravou a faca no abdômen do Ungido, sem se dar conta de que não era o mesmo objeto que antes esteve em suas mãos. A lâmina especial usada em truques de ilusionismo deu a impressão de penetrar no abdômen, mas deixou a carne ilesa. O Ungido não precisou fingir. O impacto na região acometida pela enfermidade estava sensível e ele se contraiu acusando uma dor aguda e verdadeira.
Os seguranças cumpriram sua parte com profissionalismo, enquanto alguns o detinham, a Mão de Deus, tomando-lhe a faca falsa e substituindo pela verdadeira devidamente preparada, os outros retiraram dos bolsos os lenços brancos recebidos na véspera e prontamente cobriram o que seria o local da ferida, impedindo assim que a multidão em pânico notasse que não havia sangue saindo do que deveria ser o ferimento.
As lentes das câmeras posicionadas conforme a orientação do Jornalista, registraram o Ungido sendo conduzido do local sob a comoção geral dos presentes. Os robôs da Internet comandados por Zero Um trataram de espalhar a versão dos Patriotas para todo o País. A posterior apresentação da faca e de uma camisa furada manchada de sangue deram o tom de uma comprovação que poucos exigiam naquele momento. No hospital, a equipe de máxima confiança do Doutor pôde enfim realizar a inadiável cirurgia que salvaria a vida do Ungido. Pouco tempo depois, o plano surtiria o efeito desejado: o ungido seria conduzido ao cargo político máximo do País.
(Leilton Lima é jornalista e assessor do SINTE/RN)*