Notícias

ARTIGO

Reforma Administrativa fragiliza o serviço público, o federalismo e o controle social*

27 Oct 2025

Sob o pretexto de combater “privilégios”, PEC 38/2025 ataca direitos de servidores, precariza serviços públicos e abre as portas para a terceirização

Sob a justificativa bem-intencionada de combater privilégios, como as férias de 60 dias e os altos salários, embutidos nas verbas indenizatórias do Poder Judiciário, e adotando a roupagem moderna do governo digital, a Proposta de Emenda Constitucional n. 38/2025 constitui um duro ataque aos servidores públicos, aos serviços públicos e aos seus usuários, sob o manto da lógica da austeridade seletiva. 

Dentre vários direitos perdidos pelos servidores públicos estão o adicional por tempo de serviço, a licença-prêmio, a promoção ou progressão por tempo de serviço, a conversão de férias em pecúnia e a restrição nas verbas de caráter indenizatório e nos adicionais de periculosidade e insalubridade.

Além da perda de direitos, a PEC propõe uma estrutura de carreira em que o servidor vai demorar muito mais tempo para chegar ao topo da carreira e progredir na tabela remuneratória, reduzindo a capacidade de atração dos jovens talentos, pela drástica redução do salário inicial, e promovendo o desestímulo ao servidor, condenado a viver vários anos com os baixos salários.

Outro ponto sensível é a ampliação da possibilidade de contratação temporária sem estabilidade, bem como a adoção de critérios mais complexos para a obtenção dessa proteção. Considerando o baixo grau de espírito republicano na gestão pública em nosso país, corre-se o risco da aferição desses critérios atender a outros interesses que não o desempenho na prestação de serviços. 

Vale lembrar que a estabilidade do servidor, longe de ser um privilégio, é a salvaguarda para a função pública em conformidade com a lei, protegendo o seu exercício em relação às instabilidades e idiossincrasias do poder político. 

Em relação à governabilidade, causa espécie a ideia de que cargos em comissão devam ser ocupados por meio de processo seletivo, o que esvazia sua própria natureza baseada na confiança, e serve de pretexto para reduzir o compromisso do poder político como o serviço público, afastando este da alta administração desempenhada por agentes políticos. Aliás, se não há o elemento da confiança, os cargos perdem razão de ser, sendo preferível estruturar os serviços pelas carreiras de servidores efetivos.

No plano federativo, a proposta esvazia a competência de Estados e Municípios para dispor sobre os seus serviços públicos, a partir da previsão de lei de normas gerais da União, que desceria a detalhes relacionados ao peculiar interesse local e regional, fragilizando a autonomia federativa, como, por exemplo, a realização de concursos, a organização de carreiras, o regime disciplinar e os cargos em comissão.

Ainda no plano federativo, a PEC impõe um teto de gastos aos Estados, com um congelamento das despesas primárias, incluindo as de pessoal. 

Em relação aos municípios, também há graves limitações à autonomia local, inclusive com a limitação do número de secretárias municipais, o que reduz substancialmente a auto-organização administrativa. 

Todas essas medidas de austeridade, com a redução das despesas com pessoal, não consideram que as necessidades públicas, assim como a população, são crescentes. E se o Brasil deseja melhorar o grau de bem-estar do seu povo, não tem como deixar de ampliar os investimentos no serviço público, notadamente nas áreas sociais, como educação, saúde e assistência, bem como em segurança pública.

A história recente do nosso país revela que, como as limitações às despesas de pessoal não têm o condão de estancar a demanda por serviços públicos, os gestores acabam sendo obrigados a adotar soluções heterodoxas que se afastam da estrutura administrativa disciplinada pela ideia constitucional de regime jurídico único, e dos controles sociais daí decorrentes, para adentrar em contratações temporárias, terceirizações de mão-de-obra, transferências de recursos para organizações sociais, cujos resultados estão quase sempre bem aquém dos objetivos públicos. 

Assim, como a austeridade não estanca a demanda por serviços, abre-se uma porta para todo o tipo de contratação não submetida às regras constitucionais e legais aplicadas ao serviço público, inclusive ao mesmo grau de controle interno e externo, com custo financeiro substancialmente maior e eficiência duvidosa. Daí o seu caráter seletivo. Assim, quando o limite de pessoal for atingido, o gestor irá contratar serviços por meio de uma empresa terceirizada, com custos maiores e trabalho precarizado. 

É preciso reconhecer de uma vez por todas que ainda não se inventou a prestação de serviços públicos de excelência que não seja preparada por carreiras bem estruturadas, dignamente remuneradas, protegidas pela estabilidade e submetidas ao crivo republicano do concurso público. 

Por isso, não se pode apostar em uma reforma administrativa que penaliza os servidores públicos e os serviços por eles prestados, por ser solução que não enseja a esperada economia de recursos e acarreta a redução da eficiência na prestação de serviços.

* Artigo escrito por Ricardo Lodi na Revista Fórum, em 25/10/2025.

Foto: Leandro Neumann Ciuffo.

ARTIGO

Reforma Administrativa fragiliza o serviço público, o federalismo e o controle social*

27 Oct 2025

Sob o pretexto de combater “privilégios”, PEC 38/2025 ataca direitos de servidores, precariza serviços públicos e abre as portas para a terceirização

Sob a justificativa bem-intencionada de combater privilégios, como as férias de 60 dias e os altos salários, embutidos nas verbas indenizatórias do Poder Judiciário, e adotando a roupagem moderna do governo digital, a Proposta de Emenda Constitucional n. 38/2025 constitui um duro ataque aos servidores públicos, aos serviços públicos e aos seus usuários, sob o manto da lógica da austeridade seletiva. 

Dentre vários direitos perdidos pelos servidores públicos estão o adicional por tempo de serviço, a licença-prêmio, a promoção ou progressão por tempo de serviço, a conversão de férias em pecúnia e a restrição nas verbas de caráter indenizatório e nos adicionais de periculosidade e insalubridade.

Além da perda de direitos, a PEC propõe uma estrutura de carreira em que o servidor vai demorar muito mais tempo para chegar ao topo da carreira e progredir na tabela remuneratória, reduzindo a capacidade de atração dos jovens talentos, pela drástica redução do salário inicial, e promovendo o desestímulo ao servidor, condenado a viver vários anos com os baixos salários.

Outro ponto sensível é a ampliação da possibilidade de contratação temporária sem estabilidade, bem como a adoção de critérios mais complexos para a obtenção dessa proteção. Considerando o baixo grau de espírito republicano na gestão pública em nosso país, corre-se o risco da aferição desses critérios atender a outros interesses que não o desempenho na prestação de serviços. 

Vale lembrar que a estabilidade do servidor, longe de ser um privilégio, é a salvaguarda para a função pública em conformidade com a lei, protegendo o seu exercício em relação às instabilidades e idiossincrasias do poder político. 

Em relação à governabilidade, causa espécie a ideia de que cargos em comissão devam ser ocupados por meio de processo seletivo, o que esvazia sua própria natureza baseada na confiança, e serve de pretexto para reduzir o compromisso do poder político como o serviço público, afastando este da alta administração desempenhada por agentes políticos. Aliás, se não há o elemento da confiança, os cargos perdem razão de ser, sendo preferível estruturar os serviços pelas carreiras de servidores efetivos.

No plano federativo, a proposta esvazia a competência de Estados e Municípios para dispor sobre os seus serviços públicos, a partir da previsão de lei de normas gerais da União, que desceria a detalhes relacionados ao peculiar interesse local e regional, fragilizando a autonomia federativa, como, por exemplo, a realização de concursos, a organização de carreiras, o regime disciplinar e os cargos em comissão.

Ainda no plano federativo, a PEC impõe um teto de gastos aos Estados, com um congelamento das despesas primárias, incluindo as de pessoal. 

Em relação aos municípios, também há graves limitações à autonomia local, inclusive com a limitação do número de secretárias municipais, o que reduz substancialmente a auto-organização administrativa. 

Todas essas medidas de austeridade, com a redução das despesas com pessoal, não consideram que as necessidades públicas, assim como a população, são crescentes. E se o Brasil deseja melhorar o grau de bem-estar do seu povo, não tem como deixar de ampliar os investimentos no serviço público, notadamente nas áreas sociais, como educação, saúde e assistência, bem como em segurança pública.

A história recente do nosso país revela que, como as limitações às despesas de pessoal não têm o condão de estancar a demanda por serviços públicos, os gestores acabam sendo obrigados a adotar soluções heterodoxas que se afastam da estrutura administrativa disciplinada pela ideia constitucional de regime jurídico único, e dos controles sociais daí decorrentes, para adentrar em contratações temporárias, terceirizações de mão-de-obra, transferências de recursos para organizações sociais, cujos resultados estão quase sempre bem aquém dos objetivos públicos. 

Assim, como a austeridade não estanca a demanda por serviços, abre-se uma porta para todo o tipo de contratação não submetida às regras constitucionais e legais aplicadas ao serviço público, inclusive ao mesmo grau de controle interno e externo, com custo financeiro substancialmente maior e eficiência duvidosa. Daí o seu caráter seletivo. Assim, quando o limite de pessoal for atingido, o gestor irá contratar serviços por meio de uma empresa terceirizada, com custos maiores e trabalho precarizado. 

É preciso reconhecer de uma vez por todas que ainda não se inventou a prestação de serviços públicos de excelência que não seja preparada por carreiras bem estruturadas, dignamente remuneradas, protegidas pela estabilidade e submetidas ao crivo republicano do concurso público. 

Por isso, não se pode apostar em uma reforma administrativa que penaliza os servidores públicos e os serviços por eles prestados, por ser solução que não enseja a esperada economia de recursos e acarreta a redução da eficiência na prestação de serviços.

* Artigo escrito por Ricardo Lodi na Revista Fórum, em 25/10/2025.

Foto: Leandro Neumann Ciuffo.

Agenda

Newsletter